quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Saudosismo ou é por ser Natal?

Esta altura natalícia transporta-me para alguns anos atrás. Não muitos até porque nem atingi a meia-idade. Recuo para os primeiros dez anos da minha vida. È nesta idade que o Natal fazia algum sentido. Era por esta altura que, devido à educação católica que tive conjugada com a inocência da magia festiva, vivia intensamente os rituais que caracterização a celebração do nascimento do salvador, filho de Deus. Foi por esta altura que, a maioria da minha geração e geração anteriores, tiveram porventura, grande parte das alegrias de infância. Em minha casa, os brinquedos era sinal de aniversário ou Natal. Como tal, e como os brinquedos são parte integrante da magia de encantar, também todos os preparativos da festividade acabam por ficar na memória.
Havia quase como que um denominador comum nas famílias portuguesas, mais cosmopolitas da altura. Todos iam passar o Natal “à terra”. Era como que, imperativo para a sociedade, voltar as suas raízes e assim consolidar os laços, rever os amigos e manter a família de já com três ou quatro gerações em contacto. A minha família materna, tem raízes num lugar situado nas encostas da serra do Caramulo. As viagens para lá eram uma aventura. Demorava-se imenso, as estradas eram más, as viaturas não eram os topos de gama de agora, o que tornava uma viagem de 3 horas um martírio até para o mais entusiasta. Nada comparado com a facilidade dos acessos actuais. Recordo o caminho, que nos levava a percorrer o luso, paragem obrigatória para beber água da fonte da conceituada marca. Enchíamos o garrafão de vidro, que na altura se distinguia dos garrafões de vinho, por ter a parte que envolvia o vidro só até meio e ser de plástico branco. Os de vinho eram em verga, o saudoso”palhilhas” ou “câmara de filmar de 5 litros”, imagem de marcar do turista português nos anos 80. De Inverno a subida para o Luso era um acto de coragem. Quando o nevoeiro era muito, a única hipótese de orientação, era o traçado da estrada, não se via para lá do metro, metro e meio. Um camião de mercadorias que passasse por lá, teria de ter um bom condutor. Nas curvas teria de esperar que os carros que circulassem em sentido contrário passassem, para assim ter espaço para poder continuar. Como as curvas eram muitas o tempo custava a passar.
Chegados ao destino tudo mudava. Podíamos respirar o ar puro, ainda hoje é assim. Era para mim um lugar onde podia correr, saltar, atirar com a fisga pois não havia problemas de partir algum vidro. Podia ver os bichos, havia gatos, galinhas e coelhos, coisas que não tínhamos nos apartamentos. Havia as árvores que podíamos subir, a fruta que podíamos comer sem ser as escondidas do dono. Era uma liberdade que não se assemelhava a nada. Depois havia os primos, que também estavam presentes para a “romaria”. Eram mais uns para se juntar a confusão, a nossa sorte é que os mais velhos estavam entretidos na conversa, e nós os mais novos, tínhamos mais espaço para a “judiaria”. Era um despique na vez de andar na bicicleta “pasteleira”, quando não eram dois a andar ao mesmo tempo. Nem chegávamos com os pés ao chão, mas desde que desse para andar estava tudo bem.
A família era uma família tradicional, modesta. A casa era antiga mas forte. Uma casa beirã, com paredes de pedra, granito escuro, sem reboco. Apenas a argamassa que fixava as pedras, se encontrava pintada de branco. Dois andares, sendo o térrio não habitado. Chamam a estes pisos “lojas”. Era tipo uma despensa, pois estava lá quase tudo, desde lenha, os pipos do vinho, o lagar, a salgadeira do presunto, as ferramentas de trabalhar no campo, as hortaliças que eram trazidas dos campos. Era um lugar fresco, o chão era de terra batida, havia pouca luz, que entrava pelas portas e por uma pequena vigia. Na parte de cima da casa tinha outro encanto. Foi a primeira casa do lugar a ter luz eléctrica, o chão era soalho de madeira que rangia a cada passo. Entravamos na cozinha por uma porta larga de madeira, estava pintada num vermelho “zarcão”. A comida era feito no fogo da lenha. Ainda lembro a comida feita naquelas panelas pretas de 3 pernas, só alguns anos depois veio um fogão a gás. A cozinha tinha um forno de pedra, onde se cozia a broa, que era feito dos cereais semeados e colhidos nos terrenos da família. Depois eram moídos num moinho que ficava a menos de 100 metros da casa, um moinho de água que penso já não existir hoje. Era diferente o sabor. Era trabalho dedicado. O tempo do amassar, o deixar levedar, fazer uma cruz na massa ao mesmo tempo que se faz uma reza, a pedir a Deus a sua graça para que a massa levede. Depois era aquecer o forno com lenha, e a sua altura, meter a massa no forno e esperar que saísse uma broa quentinha e as bolas de carne ou sardinha. Com o tempo as forças para o pão diminuíram. O forno foi tapado e a grande lareira onde se queimava a lenha para aquecer a casa foi substituída por um fogão de lenha. Sabia tão bem o café de cevada feito lentamente, acompanhado no com pão torrado. Um pitéu as maçarocas de milho por cima das brasas do fogão. Só ali havia estas iguarias.
Lembro de naquela casa não haver televisão. Havia apenas um rádio a pilhas que tinha sido comprado numa paragem que tinham feito nas Canárias, numa deslocação a Angola, que fizeram para visitar as filhas. Mais tarde veio a Tv. Mas nem sempre estava ligada. Eram forretas, não queriam gastar muita energia eléctrica, e é claro que os mais novos por vezes perdiam os bonecos. Mas também havia tanta coisa para entreter que não era nenhuma desgraça. Não via os bonecos mas podia andar enfiado no galinheiro a ver se as galinhas já tinham posto os ovos, podia mexer nos coelhos como se fossem gatos de estimação e dar comida a boca. Havia tanta coisa para apreciar. O cantar do galo que fazia o favor de nos acordar, o cantar dos pássaros que estavam a cantarolar mesmo perto da janela, subir ao enorme diospireiro que se encontrava na parte traseira da casa. Era uma disputa para ver tirar água do furo também. Não havia água canalizada, havia uma bomba que retirava água de um furo aberto a punção e marreta. Tudo ali mesmo perto da cozinha. A água para beber vinha de uma fonte que ficava perto. A água era transportada nos cântaros feitos pelo Manuel Latoeiro ou nos célebres cântaros de plástico azul.
A ceia de natal chegava, e a pequenagem já estava mais para dormir que propriamente desperta. A tradição mandava que na ceia o prato fosse Bacalhau com as batatas e nesta casa não era excepção. A mesa era corrida. No topo estava o “Patriarca” e do lado esquerdo, praticamente sempre, sentavam dois dos netos. Eram de idades próximas, cúmplices nas brincadeiras, sócios nas partidas aos outros membros da família e acima de tudo, adeptos do mesmo clube de futebol. O resto da família sentava-se onde havia lugar, sendo a última escolha para “matriarca”.
A matriarca era a pessoa “menos” admirada, menos compreendida. Era a pessoa mais ocupada, era uma “escrava” como a maioria das mulheres daquela geração. Tinham de cuidar dos lares, dos maridos e se depois sobrasse tempo, então poderiam cuidar delas. Era um a pessoa normal, com o rosto marcado pelo tempo. Tinha pouca instrução. Andou na escola o tempo suficiente para aprender a ler, a escrever, fazer contas aritméticas. Atingidos estes objectivos, estava preparada para a vida. Casou teve filhos, neste caso 3 filhas. Cuidava da família, da casa, dos campos e ainda arranjava tempo também, para tosquiar umas ovelhas e contribuir com mais alguns centavos para o orçamento. As mãos estavam calejadas da enxada, a pele queimada, ora do frio gélido do Inverno, ora do calor seco e abafado do verão. As suas feições eram marcadas, as rugas nunca foram disfarçadas, ainda se agravaram quando decidiu trocar os dentes problemáticos por próteses. A perda de alguma visão fizeram-na usar óculos que afundaram ainda mais os olhos. O cabelo estava sempre esticado e enrolado atrás num rolo que parecia aqueles capachos de pano que as varinas usavam para não magoar a cabeça quando transportavam as canastras do peixe
Nada podia falhar, pelo menos na altura em que a família estava presente, estes “reis” de sua casa, proporcionavam á sua prole, o melhor que tinham para oferecer. Talvez uma tentativa de compensar o aperto e faltas de outros tempos, as privações impostas com medo e repressão de ditadura caseira.
Acabado o jantar, vinha a conversa. Era o convívio, que passados alguns anos, se transformou num debate de três gerações diferentes. Um exemplo do chamado “Generation Gap”. Cada geração com a sua razão, com a sua ideologia, cada um com a sua sabedoria. Mas enquanto a ingenuidade tapava os olhos da garotada, fazia-se conta ao tempo para ir abri as prendas. Era meio ano a espera de abrir um presente, agora outro só para os anos, e esses eram para o fim da primavera. Era muita expectativa, pois nunca o pai natal acertava com o meu pedido. Devia ser surdo, ou então “gritos mudos não bradam aos céus.” Passava-se mais um tempo a brincar com a novidade. De seguida ia tudo para a cama. Os mais novos partilhavam as camas. A casa tinha apenas 3 quartos, que eram para os casais. Os mais novos dormiam em comunidade, numa camarata improvisada na sala que só servia para receber o padre na Visita Pascal. Nessa altura, a mesa quadrada no centro da divisão, levava uma toalha branca e por cima diversas iguarias a compor a mesa para receber a visita do senhor Prior e assim abençoar o lar. Tirando essa altura, só era utilizada com museu, havendo o cuidado da devida manutenção dos bibelots.
Hoje já não romarias. O patriarca deu alma ao criador, a matriarca teima manter a sua vida e a sua independência, vive no seu reino , à sua maneira. Os netos, cada um tem a sua vida, uma multiplicações de vidas que levam a outras escolhas e a outros rumos. A matriarca vai pendente ora para um lado, ora para o outro. Com o tempo os cabelos tornaram-se brancos, a pele mais seca, as rugas mais acentuadas, a memoria mais esquecida. A genica é muita mas não a mesma de outrora. Já lhe dissera várias vezes: “tomara eu chegar a sua idade e com a sua saúde”. Vai levando a vida como quer, façam-lhe a vontade. Mais vale viver como se quer do que com imposição dos outros. Não há nada como a nossa casa, por melhor que a casa de alguém, a nossa casa é sempre o nosso lugar. Ela sabe-o bem, é isso que ela quer. Na sua casa, ela é a rainha, na casa de outrem é sempre outro elemento. Enquanto tiver forças para se manter no seu trono, seja feita a sua vontade…
Um grande abraço a todos. Volto para a semana…

2 comentários:

Jaquim Pimpão disse...

Um momento fantástico este post é como viajar no tempo, sem máquina...
É só pena que "rainha" não leia este elogio, de um neto que respeita e orgulha-se das suas raízes humildes e simples...

Good Work...

Jaquim Pimpão

Jeremias disse...

Um grande post! Talvez o melhor que já por aqui passou, Américo!

Temos um novo "Miguel Torga" na forja...