quinta-feira, 26 de junho de 2008

Avante!

A Marinha Grande, a terra que me viu nascer, é conhecida a nível nacional pela sua grande massa de militância comunista. Não me surpreendi assim - tinha eu 16 anos - quando via na biblioteca da escola secundária desta cidade algumas revistas "Made in USSR" com a aprovação e o carimbo oficial do Partido Comunista Soviético.
Se lá foram parar através dos dinheiros públicos oferecidos àquela escola ou se eram oferta de um generoso militante que queria dar logo às novas gerações alguma "formação" política era coisa que me transcendia. O que não me transcendia era o tema recorrente dessas revistas: viver na URSS era um sonho.
Na URSS havia paz. Na URSS havia alegria. Na URSS havia progresso. Na URSS havia desenvolvimento. Na URSS havia tudo, tudo o que aquela pequena escola e país onde eu vivia não tinha.
Hoje posso achar graça ao facto de uma imprensa assim tão tendenciosa ter sido levada a sério pelas mentes inconformadas e irriquietas daquela época. Mas descobri agora, para grande espanto meu, que este género informativo marcadamente propagandístico não caíu em desuso.

Aconteceu-me parar às mãos a edição da semana passada do Avante!, o informativo do Órgão Central do PCP. E vi, para meu espanto, que o estilo e a forma de comunicar dos "jornalistas" deste "informativo" não diferia muito dos "jornalistas" dos jornais oficiais soviéticos da década de 80.
Por exemplo, e ao contrário dos jornais tradicionais que enchem as manchetes com tragédias, crimes e desgraças, o Avante! traz na capa apenas "boas" notícias:
- O "Não!" dado pela Irlanda ao Tratado de Lisboa foi uma "vitória histórica".
- Bush é cada vez mais impopular, fonte de "repúdio" e gerador de protestos.
- O governo português ouve buzinões.
- As greves de camionistas param o país.

A capa termina com uma referência a uma festa comunista de sucesso, a "Festa da Alegria" em Braga.
Lido nesta minha óptica parece-me que são só boas notícias: das altas esferas do partido para os militantes.

Outra coisa que observei neste "jornal" é a forma como se pode negar ou alterar uma notícia que pode não ser útil à causa. Na página 22 fala-se da morte de Raul Reyes, o nº 2 da guerrilha colombiana FARC. Para este jornal, ele foi morto por um bombardeamento "made in USA" e não pelo exército colombiano. Neste jornal leio que o presidente deste País é, como parecem ser todos os presidentes ocidentais ou pró-ocidentais, um "ventríloquo de George (War) Bush". E leio que a Interpol, que leu os documentos do portátil de Reyes e os analisou (que parecia indicar ligações entre as FARC e Hugo Chavez) "não é precisamente uma garantia de seriedade".

Sou daqueles que acha que o contributo que Karl Marx deu à humanidade se enquadra entre os maiores contributos intelectuais de todos os tempos. O comunismo é uma ideologia revolucionária e uma demonstração de uma certa evolução do pensamento da humanidade sobre si mesma. Entristece-me por isso ver esta ideologia tão mal tratada por alguns dos seus maiores "representantes" nacionais e internacionais.

A critica que faço, já depreenderam, não é à ideologia (da qual admiro certos aspectos) mas a uma forma de a por em prática que, em minha opinião, só a descredibiliza. Os partidos que fazem dela seu apanágio deviam tratar os eleitores com maior honestidade e respeito intelectual. E, acima dos eleitores, julgo que deviam tratar com mais honestidade e respeito os seus próprios militantes.

Estou bem consciente que este conselho pode ser dado de igual forma aos partidos de todo o espectro político (qual é o partido que trata os seus militantes como iguais e não como uma massa que é facilmente manipulável?). Mas aconteceu esta semana ter lido o Avante!. E por isso, e só por isso, gostaria de ver este "jornal" mudar um pouco a sua linha editorial e, mostrando um mundo onde somos todos criaturas frágeis e pecadoras, mostrasse um comunismo mais humano. Um certo comunismo que depreendi de Karl Marx.

8 comentários:

António Américo disse...

"Camarada" e amigo Filipe, este´é um assunto com muito pano para mangas. Creio que o comunismo é uma Utopia,e não sou o único a pensar isso, não só pela ideologia em si, mas tambem pela sua aplicação.A maneira como o Comunismo foi aplicado, e tentado tambem em portugal, felizmente Houve o 25 Novembro para travar, visava acabar com os ricos, mas na verdade, uma ideologia certa, a verdaeira preocupação seria, acabar com os pobres.Em conclusão, a ideologia comunista, acaba por ser um distribuídor de pobreza. Grande post, uma grande reflexão, continua o tema, ha muito a abordar.

Hum... vodka limão, p.f. disse...

Muito bom post Jeremias. Parabéns!

Apesar de tender "para o outro lado", concordo quando dizes que a ideologia do comunismo é "maltratada". Não ligo muito a política, mas também acho que os eleitores deviam ser tratados com mais respeito e honestidade. Muitas vezes certos partidos, ou talvez todos, parecem que tentam fazer uma lavagem cerebral aos militantes, como se tudo o que é dito fosse inquestionável. Mas o "povo" também pensa por si... e às vezes é uma afronta o que nos querem fazer acreditar.

"Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo"

KM

Jeremias disse...

Américo,

Concordo quando dizes que o comunismo é uma utopia uma vez que as suas aplicações, como lhe chamas, degeneraram em ditaduras: veja-se o caso da União Soviética, Cuba, China e afins. Infelizmente a espécie humana ainda não lida bem com a "concentração de poder" e talvez seja por isso que uma ideologia que concentra todo o poder no estado (e não o parta, como acontece com as democracias) está condenada a vir a dar um regime totalitário.
Talvez não seja de espantar, por isso, que entre os países onde há mais igualdade social (e riqueza) estejam a Suécia e Israel. Dois países que, inclusivé, já foram elogiados por dirigentes comunistas como exemplo (Israel foi muito elogiado pela URSS como sendo um grande exemplo de "comunismo", antes da URSS se virar para o lado dos Árabe$).

Jeremias disse...

Vodka,

Gostava de concordar mais contigo quando dizes que "o povo também pensa por si". Por si esta afirmação é verdadeira mas, infelizmente, não vejo grande evolução no pensamento dos últimos 20 anos. Como tento explicar no post, custa-me aceitar que a propaganda jornalística tendenciosa dos anos 80, quando não tínhamos ainda uma sociedade tão crítica e literada, ainda funcione hoje numa sociedade que, supostamente, está mais informada, mais crítica e com mais formação académica.

Como disse no comentário do post de ontem do Américo, seria interessante haver mais estudos sobre a sociologia da "manipulação de massas".

Não conhecia a frase do KM que aqui deixaste. É uma boa frase, com o seu cunho de "revolução à Che" como é próprio destes autores... ;-)

Hum... vodka limão, p.f. disse...

Jeremias

quero acreditar mesmo que o povo pensa por si... nesta sociedade mais informada e mais crítica, com maior grau académico como dizes. daí não fazer sentido a tal propaganda dos anos 80... o discurso é sempre o mesmo e nunca há nada de novo... talvez exista o medo de que se mudar o discurso, este deixa de funcionar... é uma mentalidade rígida... como diz KM, é preciso modificar o mundo... apresentar novas soluções, novas práticas, novas políticas, que se adeqúem a esta nova sociedade.

Jeremias disse...

Vodka,

É difícil ter fé na habilidade de um povo ter uma opinião crítica sobre os assuntos quando certos indicadores, como a forma como se consome e aceita as opiniões fabricadas pelos mass media, só mostram que gostamos de coisas já digeridas.
Não apoio uma mudança de mentalidades e do sistema pela "revolução", pelo menos naquele sentido militar que caracteriza certas ideologias de esquerda e extrema-direita. Mas espero que certos movimentos civis que se podem começar a ver (greves, associações de consumidores, sindicatos, etc) possam ser um indicador de desconforto das populações e um desejo de mudar. O problema, como sabes, é que estes movimentos também estão contaminados de intenções políticas. Dou-te um exemplo: conheces alguma associação de estudantes que NÃO tenha sempre a concorrer uma(s) lista(s) de uma juventude partidária?

Hum... vodka limão, p.f. disse...

Jeremias,

nesse ponto infelizmente também concordo contigo, é mais fácil por vezes aceitar a "papinha feita" do que perder tempo a "fazê-la"... e esses movimentos civis, que supostamente servem para nos ajudar, trazem outras intenções camufladas na forma como "ajudam".

Fica a esperança (ou utopia), como li n' "ASELVA", de nos vermos representados nas figuras do Estado...

Jaquim Pimpão disse...

Como ser altamente competitivo também gosto de discutir e principalmente política...
E gostava de recomendar um livro que li no verão passado e que me entusiasmou duma forma que não estava à espera...
O livro "Foi Assim" de Zita Seabra, é um relato histórico, verídico e vivido pela própria autora...
E que nos dá a ideia de como funciona(va) o PCP e a também a URSS, que a autora visitou e pôde constatar certos factos que não lhe agradaram, da tal vida de "sonho" que fazes referência...
Vou apenas salientar que a autora começa o livro, com um agradecimento ao PComunista, porque este lhe ensinou as regras e a disciplina necessárias para ser hoje, o que ela é...
O livro retrata também a vida na clandestinidade, no antigo regime
com muitas histórias que parecem absurdas para nós nos dias de hoje mas que foram bem reais...

Jaquim Pimpão